Entrevista com Carlos Satio Mitsugui MD, MSc (coordenador geral do NEBio – Núcleo de Estudos de Bioética da Associação Brasil SGI)
“Mesmo o homem de bem prova maus dias enquanto as suas boas ações não produzirem frutos; mas quando amadurecem as suas boas ações, então provará dias felizes.” (Máximas do Dhammapada)
O Budismo é uma filosofia de vida baseada integralmente nos profundos ensinamentos de Buda para todos os seres, que revelam a verdadeira face da vida e do universo. Quando pregava, Buda não pretendia converter as pessoas, mas iluminá-las. É uma religião de sabedoria, em que conhecimento e inteligência predominam.
O Budismo é uma religião prática, que trouxe paz interior, felicidade e harmonia a milhões de pessoas durante sua longa história de mais de 2.500 anos. É devotada a condicionar a mente inserida em seu cotidiano, de maneira a levá-la à paz, serenidade, alegria, sabedoria e liberdade perfeitas. Por ser uma maneira de viver que extrai os mais altos benefícios da vida, é frequentemente chamado de “Budismo Humanista”.
A religião foi fundada na Índia, no século 6º antes de Cristo, por Buda Shakyamuni, nascido ao norte do país (atualmente Nepal) como um rico príncipe chamado Sidarta. Aos 29 anos, ele teve quatro visões que transformaram sua vida. As três primeiras visões – o sofrimento devido ao envelhecimento, doenças e morte – mostraram-lhe a natureza inexorável da vida e as aflições universais da humanidade. Em sua quarta visão, um eremita com um semblante sereno revelou-lhe o meio de alcançar paz. Compreendendo a insignificância dos prazeres sensuais, ele deixou sua família e toda sua fortuna em busca de verdade e paz eterna. Sua busca pela paz era mais por compaixão pelo sofrimento alheio, já que ele desconhecia essa experiência. Ele não abandonou sua vida mundana na velhice, mas no alvorecer de sua maturidade; não na pobreza, mas em plena fartura.
Após seis anos de ascetismo, ele compreendeu que deveria praticar o equilíbrio entre a automortificação, que só enfraquece o intelecto, e a autoindulgência, que retarda o progresso moral. Aos 35 anos (aproximadamente 525 a.C.), sentado sob uma árvore Bodhi, em uma noite de lua cheia, ele, de repente, experimentou extraordinária sabedoria, compreendendo a verdade suprema do universo e alcançando profunda visão dos caminhos da vida humana – os budistas chamam essa compreensão de “iluminação”. A partir de então, ele passou a ser chamado de Buda Shakyamuni (Shakyamuni significa “Sábio do clã dos Shakya”, e a palavra Buda pode ser traduzida como: “aquele que é plenamente desperto e iluminado”).
O Budismo se espalhou pela Índia, Ásia, Ásia Central, Tibete, Sri Lanka (antigo Ceilão) e Sudeste Asiático como também para países do Leste Asiático, incluindo China, Myanmar, Coreia, Vietnã e Japão. Hoje o budismo se encontra em quase todos os países do mundo, amplamente divulgado pelas diferentes escolas budistas, e conta com cerca de 376 milhões de seguidores, representando aproximadamente 6% da população mundial.
Na visão budista, o sexo é uma força dominante na vida humana, que assegura a sobrevivência das espécies. Assim, muitas das sociedades declaram que a procriação é a única função da sexualidade e proclamam um rígido código moral no que se refere ao sexo. Se a procriação é a única função do ato sexual, então parece haver um grave defeito nos seres humanos. Nós temos inúmeras zonas erógenas, diferente de muitos animais, que apresentam um período de cio para se acasalarem. Além disso, somos capazes de ser sexualmente ativos por toda a existência, como, por exemplo, mesmo após a menopausa feminina.
Para eles, é inevitável a ênfase nos aspectos agradáveis do sexo. A questão importante consiste em não suprimir os desejos humanos naturais, mas na conscientização de certa ética que os impeça de gerar tragédias. Por exemplo: se nos sentirmos atraídos por alguém que não nos inspira o mínimo de respeito, a relação sexual será regida pelo estado de animalidade, que busca a mera satisfação do instinto individual e momentâneo. Desse modo, este ato poderá gerar consequências desagradáveis para ambas as partes.
O budismo faz-se ainda mais impressionante quando se torna aparente que ele não apresenta nenhuma contradição ao fato científico. Isso acontece, em parte, porque o domínio em que o budismo se abre e faz suas elucidações é completamente diferente da dimensão da ciência. A ciência investiga o mundo fenomenal onde o homem vive e atua, lidando com os aspectos objetivamente perceptíveis da existência.
O aspecto material é apenas parte da realidade, mas os fenômenos físicos são os mais acessíveis a uma mensuração e a uma correlação objetivas. Por essa razão, as ciências naturais se desenvolveram antes que os outros campos da ciência. Os fenômenos sociais foram estudados e examinados, o que resultou no desenvolvimento das ciências sociais. No final do século 19, as questões humanas tornaram-se um importante objeto de estudo e, posteriormente, resultaram num grande avanço das ciências culturais. Indo mais além, o estudo da mente humana progrediu da superstição e da suposição para o fato comprovável e à teoria fundamentada.
Os domínios daquilo que chamamos de “ciência” estão se ampliando gradativamente, mas uma vez que o “método científico” baseia-se na observação metódica e científica e no raciocínio, é limitado pela sua própria natureza. Há esferas que estão fora do alcance da cognição científica. Essas esferas podem ser compreendidas, mesmo que de algum modo, apenas pela mente intuitiva e subjetiva. Esse método é mais frequentemente aplicado ao fenômeno social do que à natureza, e mais ao estudo da mente humana do que ao da sociedade. O budismo elucida as verdades com base nas capacidades subjetivas das pessoas, extraindo, assim, a sabedoria prática da vida.
Segundo Carlos Satio, representante do budismo de Nitiren Daishonin, essa religião milenar não atribui condutas fixas e pré-determinadas em relação às atividades do dia a dia. Não há dogmas ou paradigmas, ela apenas fixa a vida como valor absoluto do próprio universo. O nível de compreensão da natureza, do universo e da lei fundamental intrínseca contida em todos os fenômenos determina de forma autônoma e independente a postura de todos os seres e a sua inteira responsabilidade na complexa rede de causas e efeitos ao longo do passado, presente e futuro. A verdadeira felicidade no Budismo Nitiren é a capacidade de compreender esta natureza e vencer os quatro sofrimentos (Nascimento, Envelhecimento, Doença e Morte), manifestando a sabedoria e a natureza de Buda.
De acordo com os ensinamentos budistas, os problemas que afligem a humanidade foram criados pelos próprios seres humanos, portanto também existe solução humana para eles. As pessoas criam os princípios, não devendo tornar-se dogmáticas, se aprisionando e gerando mais sofrimentos. O budismo entende que para o triunfo do humanismo, os seguintes pontos devam ser considerados: 1) Tudo é relativo e mutável; 2) Manifestar a capacidade de discernir a natureza relativa e mutável da realidade, bem como a autonomia saudável que não seja dominada por esta natureza; 3) Aceitar tudo que é humano, sem discriminação, não restringindo ou estereotipando as pessoas pela ideologia, nacionalidade, etnia, condição econômica e social, religião, saúde etc..
O desejo e a decisão pela paternidade, preservando a espécie e transmitindo os valores morais, culturais, religiosos e familiares são naturais e legítimos. As infinitas possibilidades de condições geradoras de dificuldades, angústias e alegrias, em todas as etapas da relação entre os pais e seus filhos são determinadas pelo carma individual e coletivo (entre os pais, pais e seus filhos, família e sociedade). Estes carmas interligados e interdependentes estendem-se além da concepção, atingindo o ciclo eterno de nascimento, envelhecimento, doença e morte.
No Budismo Nitiren as pessoas são incentivadas a procurar orientação médica adequada e a manifestar a sabedoria diante das adversidades impostas pelas doenças. Assim, não existem restrições ao uso de medicamentos e tratamentos, desde que façam parte da prática médica. O próprio Buda Nitiren, assim se dirige ao seu discípulo Shijo Kingo (médico e samurai): Justamente quando eu estava pensando que devia ser meu carma imutável (morrer), o senhor enviou-me um excelente remédio. Desde que o venho tomando, meu padecimento tem diminuído e agora representa uma mera fração de sua intensidade anterior. (Escrituras de Nitiren Daishonin, vol.4, p.210-211, 1991).
Dessa forma, a utilização dos conhecimentos aplicados nos procedimentos e técnicas de reprodução assistida (coito programado, inseminação artificial e fertilização in vitro) que permitam casais inférteis atingir em seus objetivos é legítima, e os profissionais envolvidos no tratamento podem ser considerados como agentes ou funções positivas e protetoras.
Carlos explica que nenhum tratamento médico está fora de risco, e a tecnologia das técnicas reprodutivas não é uma exceção. Deve-se dar prioridade máxima às considerações éticas e à segurança de cada pessoa. Essa responsabilidade é, em grande parte, dos profissionais envolvidos nesse campo, que está em rápida evolução. Em análise final, a responsabilidade dos pais em relação aos filhos gerados com a ajuda da tecnologia médica deve determinar o uso de tais técnicas. Os pais que se preocupam verdadeiramente com seus filhos devem examinar com muito cuidado o uso da tecnologia reprodutiva com base em sólidos conceitos de vida, como conduzem a própria vida e que tipo de vida eles desejam para seus filhos. (Daisaku Ikeda – Livro: Ser Humano, 2007).
Consideração especial deve ser dada às questões que envolvem a doação de embriões, pois a compaixão budista estende-se ao respeito pela vida que manifestam. Os escritos budistas esclarecem que o ser começa no momento da concepção e representa uma entidade única em processo de individualização.
O budismo interpreta a vida como algo contínuo. Do ponto de vista da reencarnação, a vida se torna uma “existência intermediária” entre o momento da morte e o do próximo nascimento. A concepção é o momento em que essa existência intermediária se une à sua próxima forma humana. No Budismo Daishonin, desde o sucesso do nascimento do primeiro ser humano, pela fertilização in vitro, em 1978, por Edwards e sua equipe, foram introduzidas surpreendentes variáveis (procriação sem relações sexuais e novas formas de paternidade e maternidade) que rapidamente infiltraram-se entre as mudanças sociais e culturais em curso na sociedade. O desenvolvimento de tecnologias de reprodução proporcionou benefícios inquestionáveis a casais inférteis e, ao mesmo tempo, uma complexidade de novas relações humanas – afetivas, sexuais, familiares e sociais.
Na concepção do budismo, o destino de embriões deve ser considerado com a máxima seriedade e reflexão, pois as causas e efeitos deste ato determinarão a própria condição de vida e a felicidade das pessoas. Assim, a decisão pelo procedimento de congelamento de embriões ou doação destes, requer uma análise de consciência pessoal. Segundo Carlos, não existe o certo ou o errado.
Quanto ao procedimento de congelamento de óvulos e embriões, não há interferência por parte do budismo. Carlos declara que a felicidade encontra-se na capacidade de compreender a natureza da vida e do universo, percorrendo o processo da vida e da morte com energia e sabedoria. Isso vale também para a doação de óvulos e sêmen.
QUADRO GERAL
Coito programado | Inseminação artificial | FIV (Fertilização in vitro) | Doação de embriões | Congelamento de óvulos | Congelamento de embriões Congelamento | Doação de sêmen/ óvulos |
A FAVOR | A FAVOR | A FAVOR | LIVRE ARBÍTRIO | LIVRE ARBÍTRIO | LIVRE ARBÍTRIO | LIVRE ARBÍTRIO |
Este texto foi extraído do e-book “Os tratamentos de fertilização e as religiões”.
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