São considerados casais sorodiscordantes aqueles em que somente um dos parceiros é portador de alguma doença infectocontagiosa que pode ser transmitida por via sexual, impedindo a reprodução por vias naturais, sem que haja risco de contaminação pelo parceiro não infectado. As doenças mais frequentes são hepatite B, hepatite C, HIV e HTLV.
Até 2005, a Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva contraindicava a gestação em casais sorodiscordantes. Entretanto, houve grande avanço no tratamento destas infecções virais, levando esses pacientes a um quadro de doença crônica com qualidade de vida e, assim, permitindo que consigam casar e ter filhos. Com isso, o futuro reprodutivo destes casais passou a merecer atenção maior. Para se conseguir a gestação de forma natural, há o risco de transmissão a seu parceiro, mesmo que as relações sem proteção sejam somente no período fértil. No caso de parceiro infectado pelo HIV, por exemplo, o risco de a mulher se contaminar sem proteção durante o período fértil é de cerca de 4,3%.
No caso de mulher infectada, há a preocupação ainda da transmissão vertical para a criança durante gravidez, parto e aleitamento, risco esse que se reduziu muito com as terapias atuais. No caso do homem infectado, a doença também deve estar controlada e com baixa carga viral. Nos casos de hepatite C e HIV, o sêmen pode ser purificado e as técnicas de reprodução assistida (inseminação intrauterina ou fertilização in vitro) irão permitir que a concepção seja realizada com segurança. Nos casos de hepatite B, a segurança na concepção é obtida pela vacinação da parceira.
É importante ressaltar que as infecções virais crônicas, além do risco de transmissão horizontal e vertical, têm um impacto negativo nos parâmetros seminais, nas taxas de fertilização e abortamento. Além disso, as terapias antirretrovirais afetam diretamente a qualidade seminal, sendo outro motivo de os casais com infecções virais crônicas necessitarem de procedimentos de reprodução assistida para alcançarem o sonho de ser pais.
Para o tratamento desses casais, há a necessidade de condições especiais para a realização dos procedimentos, não só pelo risco de transmissão entre eles, mas também pelo fato de ter sido observada a contaminação cruzada em tanques de criopreservação de tecidos.
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ToggleInfecção pelo HIV
Atualmente são diagnosticados no Brasil cerca de 400 casos novos de HIV por ano. A principal forma de transmissão é a atividade sexual sem uso de preservativo. Entre os fatores que aumentam esse risco, estão: alta viremia, imunodeficiência avançada, relação anal, relação sexual durante o período menstrual e associação de outras DSTs. Pode ocorrer ainda transmissão vertical durante a gravidez, o parto e o puerpério. Entretanto, se a mulher estiver com carga viral abaixo de 1.000 cópias/ml, com o uso de AZT durante toda a gestação, no parto e pelo recém-nascido, associado a cesárea eletiva, esse risco se reduz a 0,8%.
A sorologia para pesquisa do HIV é rotina na pesquisa de infertilidade. Em indivíduos sabidamente HIV positivos é imperativo o seguimento com infectologista e a pesquisa da carga viral. Mesmo que negativa, a carga viral não elimina a possibilidade de encontrar o vírus no sêmen, pois há uma compartimentalização dos sistemas, evidenciando uma discordância do nível sorológico plasmático e seminal.
No mundo já existem 40 milhões de pessoas infectadas, e grande parte delas está em uma fase reprodutiva, desejando formar a sua própria família. Assim, com os importantes avanços terapêuticos como a Terapia Retroviral Potente (HAART: Highly Active Antiretroviral Therapy), os indivíduos HIV positivos passaram a ter uma melhor qualidade e maior expectativa de vida, tornando realidade o desejo de ter filhos. Por isso, cada vez mais as Clínicas de Reprodução Humana como o IPGO são procuradas por casais com esta infecção.
Nestes casos, podemos nos deparar com três situações:
1) Homem infectado e parceira soronegativa: como existe o risco de transmissão da doença para a parceira, o que impede a relação sexual desprotegida, estes casais podem se beneficiar das técnicas de reprodução assistida com dupla lavagem do sêmen com posterior confirmação da negativação do vírus no sêmen por técnica de PCR. Os passos para o preparo do sêmen consistem na filtragem, lavagem e recuperação dos espermatozoides, seguida pelo PCR. Com este processo, a probabilidade de a criança ter o vírus é zero. Após esse procedimento, dependendo da concentração e motilidade dos espermatozoides, além da avaliação da mulher, pode estar indicada a inseminação intrauterina ou a fertilização in vitro. Antes de qualquer procedimento, o homem deve ser avaliado pelo infectologista e, se não estiver com a doença controlada, o casal deve recorrer à doação de esperma.
2) Homem não infectado e parceira soropositiva: quando a mulher é soropositiva, a preocupação maior é a de transmissão vertical da doença e, nesta situação, o fator limitante para o procedimento é a situação clínica da mulher, que deve ser avaliada constantemente por um infectologista. Do ponto de vista laboratorial, devemos ter uma paciente com carga viral negativa e níveis de linfócitos T CD4 entre pelo menos 200 e 400 cels/mm3. Uma possibilidade de tratamento mais simples seria a autoinseminação durante o período fértil, indicada para casais sem outros fatores de infertilidade. Durante a gestação, está indicado o uso de antirretrovirais para diminuir as taxas de contaminação para o feto, mas deve-se atentar para o fato de que alguns antirretrovirais devem ser substituídos, por serem teratogênicos. O parto quase sempre será a cesárea eletiva, evitando-se o rompimento da bolsa amniótica. A zidovudina endovenosa deve ser usada até o clampeamento do cordão em dose de ataque de 2mg/kg e manutenção de 1mg/kg/hora. A amamentação não é permitida, e a criança deve ser acompanhada por infectologista até os seis meses.
3) Homem e mulher infectados: neste caso, o que definirá a possibilidade de tratamento é, como no caso anterior, o estado de saúde da mulher assim como sua carga viral. É importante observar ainda se não há outras DSTs concomitantes que possam contraindicar o tratamento.
Além dos tratamentos de reprodução assistida com lavagem e preparo do sêmen, o Ministério da Saúde também cogita a recomendação do sexo sem prevenção, apenas no período fértil da mulher e quando a carga viral da doença estiver quase nula. Este casal deve ser acompanhado e, após a relação, aquele que não for infectado recebe o coquetel por um período, como profilaxia. Nós, da equipe do IPGO, não recomendamos esse processo pelas maiores chances de contaminação do parceiro e do bebê, além dos efeitos colaterais e custos relacionados ao uso profilático do coquetel. Seria retroagir, uma vez que atualmente já dispomos de tecnologia para oferecer melhores condições a estes casais.
Hepatite C
O vírus da hepatite C (HCV) acomete cerca de 3% da população mundial, e aproximadamente 80% dos pacientes infectados evoluem para hepatite crônica. O diagnóstico se faz pela positividade da sorologia anti-HCV associada à presença do HCV-RNA no soro por PCR. O tratamento é feito com interferon e ribavirina. A chance de transmissão sexual é baixa, em torno de 2,5% para casais sorodiscordantes após dez anos.
Durante a fase aguda da doença, nenhum processo de reprodução assistida deve ser realizado pela alta infectividade. Durante o tratamento com ribavirina e interferon e até seis meses após a cessação do seu uso está contraindicado qualquer tratamento de reprodução assistida pela teratogenicidade das drogas.
No homem, a presença do vírus da hepatite C já demonstrou alterar a motilidade e a morfologia dos espermatozoides e aumentar a fragmentação do DNA. A sensibilidade da detecção do vírus nas amostras seminais melhorou muito com o aprimoramento da técnica de PCR em tempo real, e observa-se que em 15% dos homens infectados por HCV podem ser detectadas partículas virais no sêmen, apesar de a contaminação sexual ser infinitamente menor. Existe uma correlação direta entre a quantidade de cópias do vírus detectada no sangue e no sêmen, mas a segurança com as técnicas de reprodução assistida com a lavagem seminal e PCR já foi demonstrada. Nos casos de homem contaminado pelo vírus da hepatite C, é fundamental a lavagem seminal com confirmação da negativação das partículas virais com PCR real time.
Nos casos da mulher contaminada, além da estabilidade da doença é essencial a orientação pré-concepcional e a discussão com os pais sobre os riscos de transmissão vertical. Quando a mulher tem HCV-RNA negativo, a chance de transmissão vertical é de 1%, enquanto nas que tem HCV-RNA positivo, o risco sobe para 11%. Frente a isso, no caso de PCR positivo, a gravidez deve ser contraindicada. É importante a avaliação da função hepática, uma vez que os indutores de ovulação têm metabolização hepática.
Hepatite B
A infecção pela hepatite B é a mais prevalente infecção hepática, com mais de 300 milhões de pessoas acometidas. A infecção crônica é caracterizada pela presença do HBsAg por um período maior que seis meses, o que ocorre em 5-10% dos casos.
O vírus pode estar presente no sangue, no sêmen e na secreção vaginal, dependendo do número de cópias. Presença concomitante de HBeAg indica replicação viral, enquanto positividade do anti-HBe indica o fim da fase de replicação. Positividade para anti-HBs demonstra cura e imunidade.
Deverão receber tratamento as pacientes com replicação viral, ou seja, HBeAg positivo e/ou presença de HBV-DNA, detectado por PCR.
Os parceiros sorodiscordantes devem ser protegidos com a vacinação, e nestes casos a gravidez espontânea pode ser tentada.
No caso de homem portador do vírus e mulher vacinada, existe o risco teórico de transmissão vertical, que deve ser informado ao casal. Isso ocorre porque o vírus da hepatite B tem capacidade de se integrar ao DNA do espermatozoide, consegue se replicar e atravessar a zona pelúcida, podendo ser transmitido mesmo com a lavagem seminal. Assim, o casal deve ser informado deste risco baixo, mas pode ser orientado a tentar a gravidez.
No caso de mulheres acometidas e homens vacinados, o risco de transmissão vertical é o mesmo nas gestações espontâneas ou por reprodução assistida, com as mesmas indicações que um casal sem o vírus. As taxas de contaminação vertical vão de 2% a 15%, quando apenas o HbsAg é positivo, subindo para 80-90%, quando existe replicação viral (HbeAg positivo. )A criança ao nascer deve ser imunizada e receber imunoglobulina.
HTLV
A prevalência do vírus na população é de 0,5%, e somente 5% terão manifestações clínicas, que podem ser neurológicas ou leucemia/linfomas. No caso da mulher acometida, o risco de transmissão para o parceiro é menor que 1%, podendo-se tentar gravidez por métodos naturais, desde que as condições clínicas da mulher estejam adequadas.
No caso de homem portador e mulher não, a chance de transmissão é em torno de 60%, devendo-se utilizar a reprodução assistida com lavagem do sêmen.
O sentimento fica na esperança de que todos, independentemente de serem ou não portadores de uma doença infectocontagiosa, tenham a possibilidade de, por meio dos recursos que as técnicas de reprodução assistida trazem, tornarem possível o sonho da maternidade sem aumentar os riscos para seus parceiros e sua prole, garantindo dessa forma que os direitos sejam iguais para todos.
Processamento dos espermatozoides (Técnica de lavagem dos espermatozoides)
O sêmen deve ser coletado alguns dias antes do procedimento para que haja tempo suficiente para o seu preparo e a confirmação da ausência da carga viral até o dia da fertilização. O processamento é realizado através de técnicas de centrifugação, que oferecem grandes chances de desinfecção. O processo é complexo e exige várias etapas. Após a coleta, o material é colocado em um tubo de ensaio com um meio de cultura que mantém os espermatozoides vivos. Depois, esse conteúdo é centrifugado, ficando o líquido seminal que contém o vírus, na superfície do tubo, separado dos espermatozoides viáveis. A seguir, mais uma vez, este material é enviado à centrífuga para ser lavado em meio de cultivo semelhante ao encontrado no trato reprodutivo feminino.
Ao final destas etapas, uma parte do material processado é encaminhado para fazer novos testes para confirmar se está livre do vírus e a outra parte é congelada para ser utilizada no dia do tratamento. Se a amostra enviada para exame evidenciar resultado negativo (ausência de vírus) certamente o que foi congelado também está descontaminado. Se o tratamento realizado não der certo, o processo terá que ser todo refeito, inclusive o congelamento.
Este texto foi extraído do e-book “Manual Prático de Reprodução Assistida para a Enfermagem”.
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